Anorexia e bulimia: Pulsão com ou sem o Outro? Elisa Alvarenga

A
psiquiatria contemporânea, como sabemos, optou por suprimir a categoria da
histeria das suas classificações diagnósticas. Isso não impede, porém, que o
real da experiência se manifeste, por exemplo, sob a forma da atual epidemia
histérica da anorexia: ela surge geralmente na adolescência, no sexo feminino
e, cada vez mais frequente, nos países capitalistas.
A anorexia
foi descrita, em 1873, por Charles Lazègue, que a fez entrar, solidária à
histeria, na nosologia psiquiátrica
 (1). Um século depois, Freud,
num manuscrito enviado a Fliess, complexifica a questão, aproximando anorexia e
melancolia: a perda do apetite equivale a uma perda da libido. Freud destaca,
no entanto, a anorexia histérica, onde a voluptuosidade fica ligada à
repugnância como defesa (2). Assim, se esta entidade clínica não foi isolada
pelo discurso analítico, inauguram-se com Freud as investigações e
contribuições dos psicanalistas sobre as causas e possibilidades terapêuticas
da anorexia.
Os
psiquiatras quiseram ultrapassar a concepção freudiana da anorexia como
transtorno pulsional, que poderíamos dividir em duas vertentes, desenvolvidas
pelos psicanalistas lacanianos: as perturbações da libido onde está
fundamentalmente em causa a relação do sujeito com o desejo do Outro, e portanto
a significação fálica, e aquelas onde o sujeito se satisfaz num gozo pulsional
autoerótico.
Ao ignorar,
como dizíamos, a concepção freudiana da anorexia como transtorno pulsional, os
psiquiatras quiseram restringir a anorexia a um transtorno essencial da
integração da imagem do corpo, limitando-se aos aspectos sobretudo imaginários
da relação do sujeito com seu corpo. É certo que a imagem do corpo, pertencente
ao registro imaginário, tem um papel central na anorexia, mas ela passa a
funcionar como um nó real. Ali onde a função simbólica falha, seja
estruturalmente, no caso das psicoses, seja circunstancialmente, nos episódios
anoréxicos na neurose, a fixidez de um excesso nesta imagem, que se manifesta
como ver-se gordas mesmo em estado de máxima magreza, verificará sua função de
real.
Na histeria
a imagem do corpo pode vir como substituto à falta do significante que
representaria o sujeito no Outro. A anorexia é uma maneira da histérica
buscar nomear-se como mulher através da imagem do seu corpo, buscando esgotar
na imagem a pergunta pela feminilidade. Na falta de ter o falo, a anoréxica
quer sê-lo, mesmo que seja, como o diz Lacan, um falo meio magrelo
(3). Ela
paga com o corpo, no entanto, sua recusa da castração simbólica: inibição da
sexualidade, detenção da função hormonal, borramento dos caracteres sexuais
secundários e amenorréia.
Lacan,
apesar das referências esparsas à anorexia, sobretudo àquela que se aproxima da
estrutura da histeria, nos dá elementos para ler a posição do sujeito anoréxico
ou bulímico e pensar intervenções possíveis do psicanalista, desdobrando uma
série de casos segundo a posição do sujeito diante do Outro(4)
Nos casos
mais complexos, as intervenções são, entretanto, mais eficazes, pois a anorexia
é literalmente mental: o sujeito não quer nada saber, a aversão pelo
alimento traduz uma aversão por seus próprios pensamentos. 
Trata-se de
uma repugnância de caráter libidinal, tal como quando, na histeria, o falo se
reduz ao pênis, em virtude da dificuldade do sujeito em alojar-se sob a
significação fálica. Um exemplo clássico é o caso do homem dos miolos frescos,
comentado por Lacan em A direção do tratamento( 5). Este paciente, de Ernst
Kris, que apresentava severa inibição intelectual, não podia pensar, ter suas
próprias idéias, por medo de roubar as idéias dos outros, tal como roubava
guloseimas quando criança. Ele não consegue escrever porque está obcecado pelo
medo de plagiar seu vizinho. Trata-se, para Lacan, de um caso de anorexia
mental, anorexia, neste caso, quanto ao desejo do qual vivem as idéias, e Lacan
o embarca na balsa das virgens magras. Na dificuldade em dar um sentido fálico
à rivalidade com o pai, o paciente vai comer miolos frescos após a intervenção
do analista, que tenta mostrar-lhe que ele não é plagiário[i]. O acting-out é
uma maneira de dizer que o analista não está bem colocado, mostrando que o
sujeito está, apesar da inibição, tocado pelo inconsciente.
Um exemplo
de anorexia em um sujeito histérico nos é relatado por Alessandra Rocha: uma
adolescente anoréxica, e logo, bulímica, com seu cortejo de vômitos
compulsivos, sob seus cuidados, se coloca claramente na posição de buscar o
olhar do pai e da mãe sobre ela. Sendo a irmã mais velha o ideal de beleza e a
cúmplice da mãe na sua posição de mulher, B quer encarnar, com seu corpo
esquálido, o ideal do corpo perfeito colocado pela mãe, que está sempre
concernida com um regime alimentar. Com suas exigências alimentares
particulares, B quer, ao mesmo tempo, uma prova de amor da mãe, fazer face à
rivalidade da irmã, que compete com ela nas escolhas amorosas e ser alvo do
olhar do pai, a quem angustia. Na transferência, logo toma a analista no lugar
d’A mulher que saberia algo sobre o feminino. Atua, ausentando-se das sessões,
como que perguntando: posso faltar ao Outro? O Outro pode ficar sem mim? É o
seu lugar no desejo do Outro o que está em questão.
Fazendo
série, temos os casos em que o sujeito joga com a recusa do alimento
como recurso extremo para sustentar o seu desejo e não ser reduzido a um objeto
para o Outro.
 Nestes casos, menos plásticos às nossas intervenções, a
anorexia se instala quando o Outro, confundindo o dom de seus cuidados com o
dom de amor, no lugar do que não tem, “empanturra a criança com a papinha
asfixiante do que tem. É a criança alimentada com mais amor que recusa o
alimento e usa sua recusa como um desejo(6). Temos a esse respeito um exemplo
anedótico relatado por Jorge Alemán, que nos conta numa conferência que, na sua
infância, diante do esmero da mãe em fazê-lo comer, preparando-lhe os mais
sofisticados pratos, perdia totalmente o apetite. Só foi recuperá-lo na
adolescência, quando passou a comer fora de casa com os amigos (7).
Um terceiro
caso de figura, mais reticente às intervenções do analista, é aquele em que o
paciente faz da anorexia um suicídio lento pela boca(8) colocando em cena um
apetite de morte que configura o imperativo implacável do supereu. São os casos
em que, se não temos uma psicose desencadeada, devemos estar atentos à função
que cumpre o comportamento anoréxico ou a compulsão alimentar. São geralmente
sintomas instalados desde a infância, modos de vida do sujeito, maneiras de
lidar com o Outro, originalmente materno, de forma a mantê-lo a uma suficiente
distância para viver. A precariedade da metáfora paterna se revela na
implacabilidade do supereu, cuja vigilância pesa sobre os passos do sujeito.
Não estamos, ainda, nestes casos, diante de uma psicose melancólica, mas o
tratamento se faz necessário, ao longo da vida, para impedir que o sujeito
sucumba ao imperativo do supereu, seja morrendo de inanição, seja provocando,
pelos excessos, toda sorte de doenças que colocam em risco sua vida.
Por exemplo
Z, há anos em análise, é obesa desde a infância. Lembra-se que a mãe a
alimentava em segredo, curto-circuitando a preocupação do pai, desde sua
infância, com um regime para emagrecer. Na sua prática bulímica, que a torna feia
e disforme, Z atende, ao mesmo tempo, à demanda da mãe de alimentá-la e à
demanda velada do pai de que ela, tornando-se uma cientista, não encontre um
companheiro. Sua preferência pelos homens casados ou homossexuais, e portanto,
o impedimento de ter um homem em sua vida, nos faria pensar à histeria, não
fosse o apetite de morte que se coloca em cena na sua compulsão alimentar.
Sucedem-se, no corpo, todo tipo de doenças graves, marcas da obesidade mórbida.
Z não pensa
em prescindir da análise, mas recusa, sistematicamente, o uso de
antidepressivos, artifício proposto para tocar na inércia do gozo, manifesto em
suas queixas, constantes, de tristeza, incapacidade e descrença em si mesma.
Quando se atreve a viver uma experiência amorosa ou a pensar numa terapêutica
mais efetiva, ela entra em pânico: é a sua reação diante da possibilidade de
ser desalojada do seu sintoma. Saberia ela viver sem ele?
Finalmente,
caberia destacar os sintomas anoréxicos e bulímicos presentes nas psicoses
esquizofrênicas e melancólicas. Trata-se aqui, não da mortificação do corpo
pelo significante, mas do retorno, no real, do princípio freudiano do Nirvana,
como propõe Massimo Recalcati, com o seguinte exemplo. Nas palavras de sua
paciente: “A vida é um excesso, um terremoto. Tudo aquilo que me vejo obrigada
a comer, deve ser neutro. Só o sem-sabor ou o não-sabor me sustenta, o sabor me
ameaça, me perturba, me desequilibra. Não sou eu quem sente o sabor, mas o
sabor me ameaça. Como o mínimo do mínimo, que deve ser sem-sabor, não deve
acrescentar nada ao corpo. Se sinto o sabor, tudo desmorona”. Um sujeito
anoréxico histérico, ao contrário, mastiga para sentir o sabor e cospe para não
incorporar o alimento. Outra paciente, psicótica, diz: “O mesmo que entra deve
poder sair do corpo. As entradas devem ser equivalentes às saídas. Assim,
depois de vomitar, tenho que verificar que tudo aquilo que havia comido saiu do
corpo”(9).
Segundo
Mônica Schettino, psiquiatra integrante de uma equipe do Serviço de Saúde do
Adolescente do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais,
esta equipe atende atualmente cerca de 30 pacientes com sintomas alimentares.
Mais de dois terços destas pacientes apresentam quadro predominante de
anorexia, entre as quais, algumas de anorexia/bulimia, e menos de um terço
quadro apenas bulímico. Menos de 10% dos casos são do sexo masculino, sendo
portanto a grande maioria do sexo feminino.
Pouco mais
de 50% destas pacientes têm o diagnóstico estrutural de neurose. A
anorexia/bulimia revela-se, nestes casos, como uma estratégia para evitar a
sexualidade. Trata-se, diríamos, de uma recusa do corpo, da posição feminina. É
importante lembrar que estas adolescentes, entre 14 e 24 anos, estão justamente
se defrontando com o encontro com um parceiro sexuado.
Um pequeno
número destas pacientes pode ser incluído no diagnóstico de psicose
esquizofrênica, com delírios persecutórios em relação àquilo que vem do Outro,
sob a forma de alimento. Outros casos, que revelam uma posição depressiva do
sujeito, oriunda da perda de lugar na relação com o Outro materno, suscitam
mais discussões diagnósticas. Para Mônica, o diagnóstico estrutural é aí
fundamental, e o uso de antipsicóticos, sobretudo os atípicos, tem sido eficaz
em algumas pacientes que não respondem aos antidepressivos.
Das 22
pacientes anoréxicas, 9 fizeram ou fazem uso de antipsicóticos. O trabalho com
estas pacientes não é fácil, pois na transferência “devoram e vomitam o analista”,
o que justifica o recurso aos psicofármacos, para tornar o trabalho mais
viável.
Do primeiro
caso, comentado por Lacan, onde se trata de fazer do sintoma anoréxico um
significante lisível enquanto sintoma histérico, até o último, onde se trata de
acompanhar o paciente na busca de uma solução menos mortífera, temos toda uma
gama de estratégias e táticas de aplicação da psicanálise. A anorexia não é,
para o psicanalista, um sintoma alvo, mas uma maneira do sujeito estar no
mundo, temporária ou permanentemente. Parafraseando Alain Merlet (10). que nos
fala dos sintomas psicossomáticos como sintomas em suspenso, podendo ser
encontrados de maneira contingente e provisória, à espera de uma boa
interpretação que os inclua em uma cadeia significante, podemos fazer deles
sintomas analíticos ou se estão fadados a cumprir, para tal sujeito, a função
de um sinthoma, identificação da qual ele não pode prescindir.
1 LAZÈGUE, C. De la anorexia
histérica, in Estudios de anorexia y bulimia, Buenos Aires, Atuel,
2000, p. 183-187.
É FREUD, S. Rascunho G, in ESB
I,
 RJ, Imago, 1977, p. 276 e 279.
3LACAN, J. A direção do tratamento
e os princípios do seu poder, in Escritos, RJ, Zahar, 1998, p. 633.
4 Cf. a esse respeito LAURENT, E.
Improvisación – anorexias, in Estúdios de anorexia e bulimia, op.
cit., p. 131-137.
5 Cf. LACAN, J. A direção da cura e
os princípios do seu poder, op. cit., p. 607.
6 Ibidem, p. 634.
7Cf. ALEMÁN, J. El apetito de
muerte, in Pliegos, ELP, Madrid, 2001, p. 31.
8RECALCATI, M. Los dos “nada” de la
anorexia, in Pliegos, op. cit., p. 46.
9Cf. MERLET, A. Sintomas em
suspenso, in Florilégio clínico do ano 2000, AMP, Buenos Aires,
2000, p. 13-18.


Ana Amorim de Farias – Psicóloga e Psicanalista
CRP 06/39859-9
Adultos e Casais
R Apucarana, 272, sl 611 – Tatuapé-SP
(11) 9 9783 0125

Psicóloga Ana Amorim de Farias

CRP 06/39859-9

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