Fadas no Divã, de Diana L. Corso e Mario Corso

A psicanálise sente-se à vontade no terreno das narrativas, afinal, trocando em miúdos, uma vida é uma história, e o que contamos dela é sempre algum tipo de ficção. A história de uma pessoa pode ser rica em aventuras, reflexões, frustrações ou mesmo pode ser insignificante, mas sempre será uma trama, da qual parcialmente escrevemos o roteiro. Freqüentar as histórias imaginadas por outros, seja escutando, lendo, assistindo a filmes ou a televisão ou ainda indo ao teatro, ajuda a pensar a nossa existência sob pontos de vistas diferentes. Habitar essas vidas de fantasia é uma forma de refletir sobre destinos possíveis e cotejá-los com o nosso. Às vezes, uma história ilustra temores de que padecemos, outras, encarna ideais ou desejos que nutrimos, em certas ocasiões ilumina cantos obscuros do nosso ser. O certo é que escolhemos aqueles enredos que nos falam de perto, mas não necessariamente de forma direta, pode ser uma identificação tangencial, enviesada.

A paixão pela fantasia começa muito cedo, não existe infância
sem ela, e a fantasia se alimenta da ficção, portanto não existe infância sem
ficção. Observamos que, a partir dos quatro últimos séculos, quando a infância
passou a ter importância social, as narrativas folclóricas tradicionais, os
ditos contos de fadas, constituíram-se numa forma de ficção que foi
progressivamente se direcionando para o público infantil. Hoje, os contos de
fadas são considerados coisa de criança, mas curiosamente muitos deles
continuam estruturalmente parecidos com aqueles que os camponeses medievais
contavam.
Como foi que esses restos do passado vieram parar nas mãos
das crianças de hoje?
O presente livro organiza-se ao redor de duas questões. A
primeira é direcionada a essas narrativas folclóricas sobreviventes.
Pretendemos traçar hipóteses a respeito do quê as mantêm vivas até agora, que
fantasias poderiam estar animando-as. Embora muita coisa tenha mudado no reino
dos homens, parece que certos assuntos permaneceram reverberando através dos
tempos. Por exemplo, os temas do amor, das relações familiares e da construção
das identidades masculina e feminina ainda podem se inspirar em narrativas
muito antigas. Essas velhas tramas devem ter achado razões para existir em
tempos tão distintos, senão teriam perecido. São problemas e soluções de
outrora, mas que surpreendentemente encontraram lugar no interesse de gente
novinha em folha. Por quê?
A segunda questão busca saber se os contos de fadas podem
evoluir. A resposta a essa interrogação passa pela identificação daqueles que
seriam os sucedâneos modernos dessas narrativas centenárias.
Se pudermos analisar histórias infantis mais recentes, mas
que já se tornaram clássicas, nascidas e consagradas ao longo do século XX,
buscando nelas as novas formas que a fantasia encontrou de se conjugar, talvez
possamos compreender melhor algumas coisas sobre as crianças, as famílias e as
pessoas do nosso tempo. Através das fantasias que embalaram os sonhos das
gerações mais recentes, deve ser possível saber algo mais sobre o tipo de gente
que estamos nos tornando.
A importância dos contos tradicionais para a construção e o
desenvolvimento da subjetividade humana já foi estudada e demonstrada,
especialmente por Bruno Bettelheim em seu livro A Psicanálise dos Contos de
Fadas. Essa obra foi uma experiência pioneira em interpretar exaustivamente os
contos de fadas a partir da teoria psicanalítica, ressaltando que seu uso pelas
crianças contemporâneas visa a ajudá-las na elaboração de seus conflitos
íntimos. Ele acreditou encontrar na eficácia psicológica dessas tramas o motivo
de sua perenidade e, com base nessa hipótese, discorreu sobre uma série de
características da infância. Inspirado nesse trabalho de Bettelheim, nosso
estudo compartilha de seu campo de interesse e de suas questões, mas visa a
seguir um passo adiante dessa pesquisa, ou seja, verificar se histórias
infantis do século XIX e XX são usadas pelas crianças de forma similar. Além
disso, novas histórias respondem a novas necessidades subjetivas, as fantasias
traduzem as novidades existentes na vida dos jovens humanos, mas que
modificações são essas?
Na primeira parte do livro, enfocamos contos de fadas
tradicionais tal como fez Bettelheim. Dedicamos um capítulo ao re-estudo de seu
livro, onde apontamos as interpretações interessantes que ele nos legou, mas
também as divergências, fazemos críticas particularmente a certas idealizações
com que o autor cercou o problema.
Tanto o mundo dos contos de fadas, quanto a oferta atual de
ficção para crianças são universos muito extensos, e isso se reflete ao longo
do livro, onde também contamos e analisamos muitas narrativas, o que
basicamente se constitui no recheio de nosso trabalho. Quem não está habituado
ao tema pode julgar excessivo o número de histórias examinadas para responder
questões aparentemente tão simples, porém não acreditamos possível um estudo
desse assunto sem essas referências múltiplas.
Certamente poderíamos ter mantido um debate basicamente
teórico com o leitor, mas optamos por um caminho demonstrativo. Através de uma
ampla gama de exemplos de histórias infantis, tradicionais e modernas, e da
leitura psicanalítica do conteúdo inconsciente que elas podem evocar,
pretendemos contribuir para elucidar as razões de sua atualidade e consagração.
Em termos de linguagem, empenhamonos em desdobrar os conceitos psicanalíticos
de forma que se tornem compreensíveis para os leitores não iniciados nessa
teoria, mas quanto ao número de exemplos não é possível economizar, faz parte
da natureza do objeto.
Como efeito secundário do presente estudo, a análise de histórias
acaba sendo uma forma mais agradável de entrosamento com a teoria
psicanalítica, pois aqui se pode vê-la em funcionamento. Evidentemente,
personagens de contos não são pacientes, e nenhum deles recebe algum tipo de
diagnóstico. Trata-se apenas de histórias que nos permitem abordar questões
sobre os sonhos e pesadelos dos seres humanos.
Outro fator também estimulou esse estudo. O território da
análise da ficção dirigida à infância é lugar de um paradoxo: preocupamo-nos
crescente e obsessivamente com as crianças, nunca tanto investimento foi feito
em seres tão pequenos e deles tanto se esperou. Além disso, cada vez mais se
acredita nas influências precoces da formação no destino dos seres humanos. Por
isso mesmo é intrigante que tenhamos tão pouco espaço para a crítica à ficção
que lhes é oferecida. Em contraste com o volume de estudos dedicados à
literatura, à mídia e às artes como um todo, parece que poucos profissionais
estão empenhados em decifrar os efeitos sobre as crianças do leque de cultura que
hoje lhes é ofertado. Quando esses estudos são feitos, salvo raras exceções,
tendem a ganhar visibilidade pública apenas as interpretações catastrofistas
que surgem sob forma de alerta, denunciando os nefastos efeitos que seriam
gerados a partir de uma infância marcada pelos games e desenhos animados
violentos.
Mais do que oferecer soluções para os enigmas que as tramas
narradas apresentam, nosso objetivo foi incentivar esse caminho e unir esforços
com aqueles críticos que já o estão trilhando. Para isso, usamos a ferramenta
da qual dispomos – a psicanálise –, mas uma análise puramente psicanalítica
certamente é reducionista, tentaremos sempre que possível abrir o leque. Seria
uma deslealdade tratar qualquer fantasia de modo simplista, é necessária uma relação
de respeito com o caráter surpreendente de cada história, assim como uma
assumida humildade do quanto sua riqueza transcende nossa capacidade de análise.
Essas histórias sensibilizam quem as escuta em diversos
planos, e certamente não conseguiremos dar conta de todos. Por exemplo, o conto
João e Maria fala da escassez de alimentos e da expulsão do lar por essa
contingência. As crianças da Velha Europa que o escutavam entendiam bem do que
se tratava, pois a comida faltava mesmo. Mas a empatia com uma história se dá
em vários níveis e é provável que, junto com o tema da fome real, também fossem
tocadas por outras questões, para as quais todas as crianças são sensíveis,
como a separação da mãe nutridora e o medo de ser abandonado pelos pais. Já uma
criança moderna, de uma família abastada, quiçá nem saiba o que possa ser a
falta de alimentos, não obstante se fascina com a mesma história, e
provavelmente isso será devido às questões mais subjetivas.
Ainda em um outro ponto de vista, podemos supor que uma criança
brasileira, habitante da periferia miserável dos centros urbanos, se escutar a
história de João e Maria, vai encontrar no conto uma fonte para traduzir a
angústia concreta de ser expulsa de casa por seus pais e a dúvida diária sobre
a possibilidade de eles conseguirem trazer comida ou não; mas, acrescido a esse
sentido direto, talvez compartilhe com a criança de vida mais abastada a
questão sobre a posição da mãe nutridora, cujo seio ela também teve de deixar.
É provável que a empatia com os personagens desse conto ocorra em dois níveis
(social e íntimo) para todas as crianças brasileiras, afinal, há Joãos e Marias
em todos os semáforos do país, então como não pensar em ser abandonado? Além
disso, independentemente do quanto a realidade da pobreza se impõe para as
diferentes camadas sociais, não há mãe que não faça questão de lembrar a seus
rebentos, quando eles esnobam o alimento, que há outras crianças que passam
fome.
Como forma de estruturar o livro, optamos por agrupar os
contos tendo como eixo as fantasias que acreditamos que suscitam, disso
resultou que algumas histórias e personagens clássicas fossem convocadas e
outras não. Toda a escolha implica perdas, certamente os leitores encontrarão
omissões que considerem imperdoáveis. A seleção de histórias é também a que nos
foi possível, pois incluímos aquelas sobre as quais sentíamos que tínhamos algo
a dizer, entendendo-se por isso as que tocaram em algum ponto remanescente da
nossa infância e que deixou restos na vida adulta. Certamente a parentalidade
ajudou a precipitar essas escolhas, já que foi quando nos descobrimos no papel
de pais narradores que toda a dimensão desse pedaço da infância aflorou.
Em geral, quando contamos um conto nos apropriamos dele, o
subjugamos aos nossos interesses.
Para tanto, uma parte se conserva (uma espécie de núcleo da
história), mas outra é acrescentada, por isso, as histórias não permanecem
exatamente iguais com o passar dos anos. É isso que torna tão instigante o
porquê de determinados contos terem se celebrizado, durado, permanecido com um
núcleo comum tão preservado, sendo que não são necessariamente muito melhores
do que outros. Entre a variada oferta de combinatórias de fadas, bruxas, amores
e aventuras, alguns contos tiveram a sorte de oferecer uma mistura adequada ao
uso dos narradores de outros tempos.
Nosso trabalho busca compreender quais desses elementos
estão presentes em um determinado conto, qual teria sido o acerto daquela
síntese particular para que ele fosse escolhido para durar. Uma espécie de
análise do produto para entender seu sucesso, às vezes secular, no mercado da
ficção.
Quanto às narrativas mais recentes, o critério foi similar,
pois dedicamo-nos basicamente àquelas que já mostraram sinais de consagração
junto a várias gerações de crianças. Por isso, trabalhamos algumas ficções
nascidas com o século XX, que ainda são populares, e analisamos também algumas
histórias provenientes das últimas décadas, cujas personagens e tramas se
tornaram de domínio público, sendo conhecidas muito além de sua existência
escrita, desenhada ou filmada.
Este livro inclui também um apêndice, onde é contada e
analisada uma história familiar criada para nossas filhas, não é um conto
folclórico, nem um sucesso de público. A única tradição a que ela pertence é a
da pequena família nuclear que constituímos, sua única popularidade é entre as
crianças filhas dos amigos que receberam uma cópia dessa historinha, mas sua
participação no livro é justificada pela possibilidade de exemplificar e
explicar como determinado conto é escolhido e construído enquanto parte da
mensagem (inconsciente) que os pais passam aos seus filhos.
Numa história inventada, fica mais fácil compreender e
demonstrar a transparência entre os seus elementos e o inconsciente, tanto do
narrador quanto de sua platéia.
Entre as heranças simbólicas que passam de pais para filhos,
certamente, é de inestimável valor a importância dada à ficção no contexto de
uma família.
Afinal, uma vida se faz de histórias – a que vivemos, as que
contamos e as que nos contam.
Fonte: Apresentação do livro Fadas no Divã, disponível em www.marioedianacorso.com.

Psicóloga Ana Amorim de Farias

CRP 06/39859-9

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