A solidão Amiga – Rubem Alves

A noite chegou, o trabalho acabou, é hora
de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada
e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só.
Vem a tristeza da solidão… O que mais você deseja é não estar em solidão…
Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza
não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um
jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música… Assim, aos
sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele
se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em
festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se
alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando
dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e
ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se
com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a
festa… Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas
imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas
da sua solidão… A noite estava perdida.
Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A
chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos
que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas
elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um
círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da
chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum
falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o
livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão
quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa.
Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É
precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o
abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece
que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um
coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard
iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há
mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho
a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha
solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A
solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma
realidade bruta e morta. Ela tem vida.
Entre as muitas coisas profundas que
Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que
importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo.
E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão.
Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu
jardim.
Como é que a sua solidão se comporta? Ou,
talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O
que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está
dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença,
uma inimiga… Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha
solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de
amiga? Drummond acha que sim:
“Por muito tempo achei que a ausência é
falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um
estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações
alegres,
porque a ausência, essa ausência
assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!“
Nietzsche também tinha a solidão como sua
companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias
e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas,
da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras
maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde.
Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando,
falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam
caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas,
que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores,
nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as
vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em
silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem
a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos,
frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o
contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno é o
outro.“ Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia… Mas, voltando a
Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:
“Ó solidão! Solidão, meu lar!… Tua voz –
ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas
vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás,
ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés
saltitantes.
Ali as palavras e os tempos
poemas de todo o ser se abrem diante de
mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para
aprender de mim a falar.“
E o Vinícius? Você se lembra do seu poema
O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando,
falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas
aconteceu que, “certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de
uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa,
prato, facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em
construção (…) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele
humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo
levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário
emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para
ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais
bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua
construção, cresceu também o operário. (…) E o operário adquiriu uma nova
dimensão: a dimensão da poesia.“
Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais
solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma
solidão infinita.“ É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num
momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se
transformou em poeta.
E me lembro também de Cecília Meireles,
tão lindamente descrita por Drummond:
“…Não me parecia criatura
inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua
presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me
a impressão de que ela não estava onde nós a víamos… Distância, exílio e viagem
transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira
Cecília…“
Sim, lá estava ela delicadamente entre os
outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a
obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar
onde ela estava irremediavelmente sozinha.
O primeiro filósofo que li, o dinamarquês
Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o
início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em
minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do
interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade.
Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente,
sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de
um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir
à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu
não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E
sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu
sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem,
eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes
sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo
deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as
coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música
clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão…
A sua infelicidade com a solidão: não se
deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa
vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos…
Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da
solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não
sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.

Rubem Alves teólogo, filósofo e psicanalista brasileiro. Rubem Azevedo Alves nasceu em 1933, Boa Esperança, Minas Gerais. Famoso cronista.

Psicóloga Ana Amorim de Farias

CRP 06/39859-9

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