“Para o neurótico é um saber suposto ao pai, para o psicótico não pode ser suposto (pois a quem?) e deve ser produzido (pelo menos pelas trilhas da sua errância), mas também só pode ser produzido na superfície da coisa mesma, como um casulo ao redor da coisa mesma. Com efeito, de onde pode se originar um saber que não seja suposto a um sujeito, que então não possa ser transmitido, se não na coisa mesma que este saber tenta simbolizar? Para entender melhor, consideremos que a errância psicótica não é necessariamente uma operação motora. Pode ser uma errância intelectual. Falar de errância intelectual nos levaria a pensar em um tipo de pensamento sem organização, mas não é disso que se trata. Trata-se de um pensamento que tem um horizonte de totalidade, que não se autoriza a partir de uma filiação, ou seja, de uma transmissão, mas se sustenta nos seus próprios percursos, e por isso só pode emanar da coisa mesma, como se aflorasse na superfície dela.
Se tomarmos um exemplo clássico, o caso de Jean Jacques Rousseau, concluir num diagnóstico habitual de psicose não necessitaria passar por duvidosas deduções a partir da sua vida. Considerar O Emílio, por exemplo, seria mais indicado, pois se trata de uma pedagogia idealmente sem mestre, onde a natureza revelaria ela mesma os rumos do saber que a simboliza, para quem se dispusesse a percorrê-los. Mas, também, o Contrato Social poderia servir, considerando que a questão central é conceber uma origem da autoridade que não seja um efeito de transmissão, como autoengendrada. Poderíamos multiplicar os exemplos, desde a poética de uma autorevelação da natureza em Hólderlin, até a equivalência do mundo ao casulo das proposições no primeiro Wittgenstein. Só importa notar, com estas alusões (cujo alcance diagnóstico é, aliás, problemático), que a psicose deu contribuições
essenciais e talvez se entenda porque frequentemente inovadoras no campo da cultura.
Mas, voltemos ao que parece ser o essencial da diferença entre psicose e neurose, ou seja, o fato de que a metáfora neurótica é paterna e a problemática “metáfora psicótica” seria sem agente suposto.”
(Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Calligaris, Contardo. Artes Médicas. Porto Alegre. 1989 )