Distinção teórico-clínica entre depressão, luto e melancolia (Parte I)

                                                                 Edouard-Hamman-Desilusión     


Na obra de Freud, o luto aparece tanto na sua exposição sobre a
melancolia, como no estudo das sociedades primitivas ligado aos tabus que as
organizam (Freud, [1913] 1996). Segundo Freud ([1917] 1996), o enlutado
mantém-se temporariamente num estado de rebaixamento libidinal e sofrimento
ante a morte ou a perda cujos efeitos se fazem valer pela possibilidade de
dotar a dor de um término factível. O luto é evocado pelo sujeito no sentido de
fazer com que a dor não se eternize, o que o define efetivamente como um
“trabalho psíquico”. Ratifica-se na obra de Freud que o trabalho do
luto tem a função de elaboração e assimilação psíquica da perda, bem como de
possibilitar a separação com relação ao objeto perdido e o reinvestimento
num substituto. O enlutado martiriza-se pela perda, recorda-se
constantemente do morto. Ele trabalha no sentido de dar um estatuto afirmativo
a algo que se perdeu, bem como dotar este fato de um arcabouço simbólico.
Em “Luto e melancolia” ([1917] 1996), Freud descreve de
maneira mais detida as características do processo de luto, visando
distingui-lo da manifestação melancólica. Ali, ele considera que no luto
prevalece uma inibição da atividade e do eu, uma “perda ‘temporária’ da
capacidade de adotar um novo objeto de amor” (Freud, [1917] 1996: 250).
Na melancolia, a perda do objeto toma outro destino, distinto do luto.
Ali, o objeto perdido é o próprio motivo da condição trágica do sujeito, na
medida em que a ambivalência passa a assumir seu caráter violento na relação
com o objeto. A ambivalência retrata uma forma de reação à perda cujo destino é
o empobrecimento subjetivo. Identificado, paradoxalmente, ao objeto perdido
(identificação narcísica), o sujeito entra num movimento deassassinato de si
mesmo
, deflagrando um jogo de forças que reveste de uma moral aviltante o
ódio ao objeto (Freud, [1917] 1996: 250). Como resultado desse jogo de forças
aparece a autoflagelação subjetiva, característica de um senso crítico sempre
pronto a massacrar o próprio eu do melancólico.
Com efeito, o melancólico vê-se inteiramente absorvido pela perda e
afirma de maneira violenta sua condição ante o próprio sofrimento. O
melancólico despe-se ao extremo em seu discurso, referindo-se a si mesmo com a
violência de quem odeia, rejeita ou deseja vingança. O eu do melancólico acede
a um estatuto de vazio absoluto, no qual é desvelada a condição mesma da
mortalidade, da fraqueza, da desvalia, do desprezo. “Ele se
repreende” – diz Freud -, “se envilece, esperando ser expulso e
punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios
parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível” (Freud, [1917]
1996: 252).
A autoacusação, a autoflagelação e o movimento mortífero do melancólico
em direção ao seu próprio eu revelam, para Freud, uma circunstância
psicopatológica específica: o melancólico não faz o luto da perda objetal.
Ele se identifica ao objeto perdido, numa situação que
sinaliza um quadro narcísico peculiar. Isto coloca Freud na direção de uma
abordagem metapsicológica diferenciada acerca desta disposição subjetiva.
A identificação melancólica caracteriza-se, a partir disso, não como uma
identificação aos traços (identificação histérica), que tem como efeito a
constituição de um precipitado de identificações (cf. Freud, [1923] 1996).
Verifica-se que na melancolia a perda é recusada, e, através da identificação
narcísica, o melancólico mantém o objeto dentro de si. Pinheiro (1993) assevera
que: “Neste caso é como se a identificação trouxesse o objeto in
toto
, em bloco. Na ausência da dialética identificatória feita por traços,
o objeto torna-se, por assim dizer, um posseiro que ocupa o espaço egoico, num
projeto mimético e metonímico levado ao extremo” (Pinheiro, 1993: 53).
O estudo da melancolia na psicanálise conta com a contribuição de
importantes autores. Discutiremos os trabalhos de Abraham e Torok ([1972]
1995), que procuraram esclarecer essa questão sob o ponto de vista do conceito
de incorporação, além das proposições de Lambotte (2001) sobre
discurso melancólico. A especificidade do problema concernente à
identificação na melancolia revela precisamente que nesta o objeto não foi
introjetado, mas foi incorporado. A noção de incorporação, presente
nas teorias de Abraham e Torok, tem como referência fundamental o pensamento de
Ferenczi, do qual se extrai o conceito de clivagem articulado
à teoria do trauma (Ferenczi, [1933] 1992).
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE FERENCZI, ABRAHAM E TOROK
A obra de Ferenczi é uma importante referência para o avanço desses
temas, à medida que oferece um rico universo de reflexão sobre determinadas
modalidades de sofrimento não circunscritas ao paradigma da histeria. O trauma
ferencziano
 retrata um modo peculiar de subjetivação cujo enfoque
abriu importante campo de investigação sobre a melancolia na obra de Torok.
Torok dá uma dimensão teoricamente mais abrangente e clinicamente mais
específica à teoria do trauma de Ferenczi, principalmente no que tange à temática
da identificação. A autora articula o universo conceitual da identificação com
o agressor e da clivagem, descritas pelo mestre húngaro, com seu próprio
conceito de incorporação. Segundo Torok, a incorporação, ao contrário da noção
ferencziana de introjeção, está na base da experiência melancólica. A
incorporação se apresenta na subjetividade como algo que, ligado à experiência
traumática, fica impossibilitado de se incluir, de se articular psiquicamente,
manifestando-se de forma maciça, sem inscrição numa cadeia associativa. A
fantasia da incorporação é, segundo Abraham e Torok ([1972] 1995), uma recusa
da introjeção
. Ao invés de introjetar o objeto perdido, através da
atribuição de sentido com consequente metaforização (característica do universo
polissêmico), há uma incorporação maciça desse objeto (hostil), por fantasia.
Ocorre algo análogo a um enquistamento do objeto no psiquismo.
Este é o caso apenas para as perdas [narcísicas] que não podem – por
alguma razão
 – se confessar enquanto perdas. […] Todas
as palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas que não puderam ser
rememoradas, todas as lágrimas que não puderam ser vertidas serão engolidas,
assim como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa da perda. Engolidos e postos
em conserva. O luto indizível instaura no interior do sujeito uma sepultura
secreta (Abraham & Torok, [1972] 1995: 249; grifo nosso).
A ideia de incorporação em Torok é extremamente relevante para se pensar
a subjetividade melancólica. Na melancolia pode-se perceber uma dificuldade
profunda na subjetivação da própria existência. O sentimento de existência de
si mesmo torna-se extremamente frágil perante a onipotência do outro
incorporado na identificação narcísica. No mesmo traçado teórico do conceito de
clivagem em Ferenczi, e de incorporação em Torok, pode-se conceber na
melancolia a ideia de uma não-inscrição psíquica da perda do objeto perante a
fragilidade narcísica do melancólico, permanecendo o objeto clivado dentro do
próprio eu (cf. Verztman, 2002).
Maria Teresa da Silveira Pinheiro Psicanalista;
Pesquisadora da UFRJ, Coordenadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e
Clínica da Contemporaneidade (UFRJ) 
Rogerio Robbe Quintella Psicólogo (UFF), Doutor (UFRJ); Membro
do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (UFRJ) 

Julio Sergio Verztman Psicanalista; Psiquiatra do IPUB-UFRJ,
Doutor (UFRJ), Coordenador do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da
Contemporaneidade (UFRJ)

Psicóloga Ana Amorim de Farias

CRP 06/39859-9

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