Estranhas Ninharias – Diana Corso

Publicado em 01/03/2013

Edição 129

Como Clarice Lispector, precisamos nos ocupar das pequenas coisas
da vida: elas são a chave para os temas mais importantes

“Sou uma pessoa muito ocupada: tomo
conta do mundo”, escreveu Clarice Lispector. “No Jardim Botânico,
então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o olhar das mil plantas e
árvores, e sobretudo das vitórias-régias. (…) Tomo desde criança conta de uma
fileira de formigas.”
Entendo semelhantes inquietudes: muitos
dos nossos sentimentos são pateticamente dedicados a estranhas ninharias.
Dá até vergonha de confessar. Lutamos contra os pensamentos que atestam nossa
futilidade. Pedimos a nossa mente perturbada: diga logo, o que na verdade está
produzindo tanto ruído? Não adianta…
Todo ano, sempre que viajo para minha
cidade natal, sei que vou sentir uma pontada de angústia se não reencontrar o
cachorro de um vidente que sequer consulto. Chego e vou ver se estão em seu
postos, na banquinha de búzios. O velho hippie usa roupas surradas e tem longos
cabelos brancos. A seu lado, em uma almofada vistosa, repousa seu cão, também
grisalho. Certa vez notei a falta do cachorro e fiquei com um aperto no
coração: um havia perdido o outro. Agora o vidente parecia miserável, sozinho.
Para minha alegria, no dia seguinte o cão estava de volta. Com tantas
preocupações dignas de nota, por que essa?
A cidade onde nasci é para mim lugar de
muitas perdas, de lutos, mas também de férias felizes, da minha infância. O
pequeno drama imaginário, no qual faço do cachorro e do vidente protagonistas
de uma grande amizade, é uma metáfora forte. Eles representam os vínculos que
fazem de alguém um ricaço e as perdas que nos depauperam. Por isso temos que
nos ocupar das ninharias: elas são a chave para os temas de suma importância.
Clarice tinha a tarefa de olhar as plantas
do Jardim Botânico, de cuidar da integridade da fila de formigas. Ela sabia que
nossa presença no mundo faz diferença, mas está longe de ser imprescindível. A
minha com certeza mais prescindível que a dela. Esse texto, chamado “Eu
tomo conta do mundo”, termina com a frase: “só não encontrei a quem
prestar contas”.

Mentirosa, essa Clarice: ela contou para
nós. Na crônica e na ficção, soube ser embaixadora da vida mínima, onde pulsam
máximas emoções. Fazemos parte da fila de formigas de que ela tomou conta.
Somos menos solitários graças a sua generosa sinceridade. É isso que faz um
grande cronista, revelar a grandeza de nossas bobagens, sem cometer a
descortesia de reduzi-las à razão. Eis meu sonho de consumo ao escrever e
analisar nossa vida, que nem sempre sabe ser simples. Continuarei tentando.




Diana Corso é psicanalista e, atualmente, atende jovens e adultos
em Porto Alegre, onde mora. Junto com o marido, Mário Corso, é autora dos livros Fadas
no Divã e Psicanálise na Terra
do Nunca: ensaios sobre a fantasia, ambos pela
Ed. Artmed.recentemente publicou Tomo conta do mundo – Confissões de uma
psicanalista, onde uma série de crônicas que misturam a contemplação do
cotidiano com uma investigação do inconsciente. 

Psicóloga Ana Amorim de Farias

CRP 06/39859-9

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