Mãe é quem se encarrega da sobrevivência da criança – Maria Rita Kehl

Para a psicanálise, o sentimento de “maternidade” é uma construção
cultural. 


A equipe do Almanaque Brasil conversou com
a ensaísta, poeta e mãe Maria Rita Kehl, doutora em Psicanálise pela PUC-SP e
autora, entre outros livros, de A Mínima Diferença; Deslocamentos do
Feminino; e Processos Primários (poemas). Rita diz que muitos podem
ficar surpresos com a afirmação, mas do ponto de vista da criança “mãe é quem
se encarrega até as últimas consequências da sobrevivência dela”. Portanto,
“mãe” pode ser o pai, a avó ou qualquer um que a tenha encontrado abandonada.


O que é ser mãe?
Do ponto de vista da psicanálise, é uma construção
cultural. Aquele amor puro, que vem espontaneamente, mas isso é consciente.
Claro que você vai observar o macaco, o gato, seres adaptados à natureza. Os
humanos são desadaptados, entre a natureza e nós, sempre tem linguagem.
Cabrito, assim que nasce, sabe procurar a teta da cabra. E o bebê humano tem de
ser conduzido ao seio. Também não é instintivo que a primeira coisa que a mulher
deve fazer é levar o filho ao seio. Ela pode ficar beijando, ou pode sentir um
estranhamento, como muita mãe sofre. Mas sofre porque a cultura diz que ela tem
de sentir imenso amor.
Então, o
que é a “maternidade”?
A
mãe não precisa ser exatamente a mãe nata. Do ponto de vista da criança, mãe é
quem se encarrega até as últimas consequências da sobrevivência dela.
Mas não há
um instinto?
O
instinto é a relação entre a necessidade e aquilo que vai satisfazer à
necessidade. No animal, o objeto da necessidade já está dado pela natureza. O
recém-nascido procura a teta da mãe. Tem uma relação com o objeto. Assim como
fica logo em pé, sem que ninguém lhe ensine. Quando dizemos que o humano não
tem instinto, não é que não tenha o chamado “instinto de sobrevivência”. Ele
não tem essa relação inata entre a necessidade e o objeto que vai satisfazê-la.
Por isso a criança pode ser alimentada por aquilo que não lhe convém. Ela
aceita. O animal dificilmente aceita.
Há mães que
nem queriam ser mães, mas sempre acabam cuidando, não?
Se
você pegar uma geração mais tradicional, encontra adulto que diz: “Não sei por
que minha mãe teve filhos.” Aquela não foi uma mãe feliz. Casou, e vieram os
filhos. Você encontra a mãe funcional, que faz tudo como tarefa. O filho está
sempre limpo, alimentado, mas ela virou um robô. Queria ser cantora, mas a
carreira foi abortada. A situação não dá prazer ao filho. Porque a primeira
indagação da criança é “como eu faço para ser amada”. Este é o sentido básico,
aquilo que lhe faz inclusive achar que vale a pena lutar pela sua vida.
O bebê, nos
primeiros meses, se confunde com a própria mãe, não?
Ele
se diferencia aos poucos desse corpo, fonte de calor, alimento, acolhimento e
gozo. É um pedaço dele até que haja o “eu”. É parecido com o apaixonamento
amoroso, tal a perfeição do encontro, que termina um dia, senão seria um
desastre. A sensação mais tarde, de você não estar só, de alguma coisa estar
ligada a você, quase como uma extensão, é uma revivência desta vivência
perdida, quando foi harmoniosa a relação mãe-filho. A separação é necessária.
Mãe que nunca deixa faltar nada está reproduzindo uma criança psicótica, que
nunca terá sua identidade separada da mãe. É preciso se deixar faltar. Faz
parte de ser boa mãe.
Qual mãe
tem mais possibilidade de ser feliz?
A
maternidade é fonte de felicidade, mas não a única. Vivemos um momento
interessante, ao mesmo tempo cruel, com o máximo de apelos para a mulher (o
homem também) ir para o mundo. O destino não é mais ser “a rainha do lar”. Mas
estamos numa sociedade 99% privatizada. Isso tem reflexo tremendo na vida,
porque os filhos só têm um lugar onde estejam bem cuidados, o lar. A escola,
para ser mais ou menos segura, também tem de ser privada. O mundo se oferece
mas se recusa a partilhar os cuidados com os filhos. Não podem brincar na
praça, atravessar a rua. A situação só seria prazerosa para a criança onde
houvesse um mínimo de vida comunitária. Ela estaria na rua, na creche, no
parquinho, no vizinho. Com meu primeiro filho, estava separada, então criei um
rodízio com outras amigas separadas. Ficavam cinco crianças na casa de uma um
dia, depois na casa da outra, cada manhã uma mãe dava aquele tempo cuidando das
cinco, depois levava para a escola.
E essa mãe
que não pode cuidar do filho e tem de cuidar de outros?
Essa
figura brasileira, a empregada doméstica, isso é cruel. Ela começa a se apegar
mais à criança que ela cuida, porque é mais valorizada pela sociedade. Existe
um entendimento de que adolescência é fase de rebeldia… Mãe tem de aprender o
tempo todo. Claro que os mais difíceis são os períodos de separação: desmamar,
largar a fralda, ir à escola. A mãe vai perdendo controle, o filho vai perdendo
o laço com a mãe. Todo período de crescimento é separação, não tem volta. A não
ser em caso de neurose, aí pode regredir. A dificuldade na adolescência é o
narcisismo dos pais. A filha quer ser como a mãe. Para o menino, o pai é ídolo.
De repente, começa a ter algumas referências, ele fala “hum, meu pai falou
aquilo, mas ele está errado”, quer dizer, há uma perda para os pais. Alguns
agüentam tão pouco, que produzem a rebeldia. Em vez de dizer “puxa, meu filho
está crescendo”, diz “não, você está errado”.
Até que
ponto os pais devem compartilhar dificuldades com os filhos?
A
gente deve evitar excessos. Tem mãe que faz confidência à filha sobre a vida
conjugal, a filha acaba se envolvendo numa situação que não é com ela. A linha
difícil aí é você não ter que esconder dos filhos, e saber qual é a realidade
para aquela criança. Tenho um amigo, executivo, que começou a fazer uma tese.
Ele tem carro do ano da empresa, direito a uma viagem por ano. Os filhos estão
adorando. E ele está de licença, fazendo a tese, pensando em largar tudo, virar
pesquisador. Ele diz “não tenho coragem, por causa dos filhos”. Eu digo,
“cuidado, você vai cobrar deles esse sacrifício, ou eles vão descobrir que você
foi infeliz por causa deles”. É o que chamo de privatização de todos os setores
da vida, uma coisa perversa, está na publicidade, de que seus filhos têm
direito a tudo. Nada tem a ver com educação, com criar seres humanos mais
felizes, capazes de construir um mundo melhor. É só o interesse do mercado. E a
gente embarca. Hoje temos uma mudança, com a história de casais homossexuais,
que adotam filho: quem é o “pai”, a “mãe”? Há algo interessante, que é não
dizer mais “o pai, a mãe”, mas “função materna” e “função paterna”. Claro que
há pai e mãe, mas interessa saber a função. Isso não é de hoje: pais mais
maternais, mães mais rígidas.
E a
“produção independente”?
A
mãe solteira vai ser sobrecarregada se não tiver apoio, amigos. Pode ficar
excessivamente apegada ao filho. Não significa que não vá dar conta. O que acho
legal é que o modelo de família burguesa deixe de ser referência forte. A gente
inventa soluções. As primeiras gerações são mais sacrificadas, olhadas com
olhar esquisito. A primeira geração de filhos de mães solteiras sofreu mais,
assim como agora filhos de casais homossexuais.
Como é que
Freud entra nessa história de “mãe”?
Como
bom psicanalista, Freud nunca propõe o que uma coisa deve ser. Procura fazer
uma leitura do que está sendo, e o que está dando errado. O que lançou de
revolucionário foi dizer: o filho é o objeto erótico da mãe; e a mãe, o objeto
erótico do filho. Isto, numa cultura em que a mãe estava sendo deserotizada.
Ela só cumpria seu dever conjugal para conceber. Aquela santa, que nem tem
órgãos sexuais. O filho, aquela pureza. Quando Freud disse aquilo, a família
vitoriana nunca mais foi a mesma. Freud coloca o fato e o problema. Há um prazer
e você tem de renunciar a ele. Quem tem de renunciar primeiro é a mãe. O
complexo de Édipo mais grave é o dos pais. Se aguentam a onda, não segurar
aquele corpinho cheiroso o tempo todo, esse corpinho vai se separando do nosso.
Os pais são mais incestuosos do que os filhos.
E a mãe na
maturidade nos dias de hoje?
A
modernidade nos tirou tantas coisas, não? Tirou o amparo das comunidades, a
doçura do mundo, um monte de ilusões. Mas abriu uma gama de possibilidades,
única, na história da humanidade. Se a gente souber o que fazer com isso…

Fonte: http://www.almanaquebrasil.com.br/personalidades-cultura/10998-maria-rita-kehl.html

Psicóloga Ana Amorim de Farias

CRP 06/39859-9

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