Não quero ser feliz. Quero é ter uma vida interessante – Contardo Calligaris

 

Psicanalista Contardo Calligaris fala sobre o conceito de felicidade em entrevista à CLAUDIA




Psicanalista defende que deveríamos nos preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia. Isso implica ter curiosidade, aventurar-se, arriscar mais, lamentar menos e não se proteger das inevitáveis tristezas.




Mais do que buscar
permanentemente felicidade máxima, um arrebatamento mágico, deveríamos nos
preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia.
É o que defende o
doutor em psicologia clínica e psicanalista Contardo Calligaris. Uma rápida
olhada em sua biografia mostra que ele não só prega como pratica. Italiano de
Milão, depois de mais de duas décadas em conexão direta com o Brasil, já morou
também na Inglaterra, Suíça, França e nos Estados Unidos e fez muitas viagens.
Aos 65 anos, atingiu a
marca de oito casamentos – desde 2011, está com a atriz Mônica Torres – e teve
um filho francês. Além de atender no seu consultório, nos Jardins, em São
Paulo, já escreveu mais de dez livros, incluindo dois romances.
Criou até uma série
para TV, Psi, no canal a cabo HBO.
Diz que, semanalmente, abre mão de “parecer inteligente aos olhos dos
pares” e publica toda quinta-feira uma coluna no jornal Folha de S.Paulo.
Mais de 100 delas estão no livro Todos os Reis Estão
Nus
 (Três Estrelas).
Filmes, fatos, casos de amigos, tudo vira pretexto para traduzir um pouco das
teorias da psicanálise, filosofar e provocar reflexão. “Não sou de dourar
a pílula”, avisa. Não estranhe, portanto, se sentir um impulso diferente
ao terminar de ler esta entrevista.
O que é felicidade
hoje?
Não gosto muito da
palavra felicidade, para dizer a verdade. Acho que é, inclusive, uma ilusão
mercadológica. O que a gente pode estudar são as condições do bem-estar. A
sensação de competência no exercício do trabalho, já se sabe, é a maior fonte
de bem-estar, mais que a remuneração. Nós temos um ideal de felicidade um pouco
ridículo.
Um exemplo é a fala do
churrasco. Você pega um táxi domingo ao meio-dia para ir ao escritório e o
taxista diz: “Ah, estamos aqui trabalhando, mas legal seria estar num
churrasco tomando cerveja”. Talvez você ou o taxista sofram de úlcera, e
não haveria prazer em tomar cerveja. Nem em comer picanha.
Mesmo que não vissem
problema, pode ser que detestassem as pessoas lá e não se divertissem. Em
geral, somos péssimos em matéria de prazer. Por exemplo, estamos sempre
lamentando que nossos filhos seriam uma geração hedonista, dedicada a prazeres
imediatos, quando, de fato, vivemos numa civilização muito pouco hedonista. Por
isso, nos queixamos de excessos e nos permitimos prazeres medíocres ou muito
discretos.
Mas continuamos
acreditando que ser feliz é ter esses prazeres que não nos permitimos. E agora?
Ligamos felicidade à
satisfação de desejos, o que é totalmente antinômico com o próprio
funcionamento da nossa cultura, fundada na insatisfação. Nenhum objeto pode nos
satisfazer plenamente.
O fato de que você pode
desejar muito um homem, uma mulher, um carro, um relógio, uma joia ou uma
viagem não tem relevância. No dia em que você tiver aquele homem, aquela
mulher, aquele carro, aquele relógio, aquela joia ou aquela viagem, se dará
conta de que está na hora de desejar outra coisa. Esse mecanismo sustenta ao
mesmo tempo um sistema econômico, o capitalismo moderno, e o nosso desejo, que
não se esgota nunca. Então, costumo dizer que não quero ser feliz.. Quero é ter
uma vida interessante.
Mas isso inclui os
pequenos prazeres?
Inclui pequenos
prazeres, mas também grandes dores. Ter uma vida interessante significa viver
plenamente. Isso pressupõe poder se desesperar quando se fica sem alguma coisa
que é muito importante para você. É preciso sentir plenamente as dores: das
perdas, do luto, do fracasso. Eu acho um tremendo desastre esse ideal de
felicidade que tenta nos poupar de tudo o que é ruim.
O que adianta garantir uma vida longa se não
for para vivê-la de verdade? É isso que temos de nos perguntar?
Quem
descreveu isso bem foi (o escritor italiano) Dino Buzatti, no romance O Deserto
dos Tártaros. Conta a história de um militar que passa a vida inteira em um
posto avançado diante do deserto na expectativa de defender o país contra a
invasão dos tártaros, que nunca chegam. Mas tem um lado simpático na ideologia
do preparo. É que está subentendida a ideia de que um dia a pessoa viverá uma
grande aventura. Mas o que acontece, em geral, é que a preparação é a única
coisa a que a gente se autoriza.
Então, pelo menos há um desejo de viver uma aventura?
Mas
os sonhos estão pequenos. A noção de felicidade hoje é um emprego seguro, um
futuro tranquilo, saúde e, como diz a música dos aniversários, muitos anos de
vida. Acho estranho quando vejo alguém de 18 anos que, ao fazer a escolha
profissional, leva em conta o mercado de trabalho, as oportunidades, o
dinheiro… Isso nem passaria pela cabeça de um jovem dos anos 1960.
A julgar pela quantidade de fotos colocadas nas redes sociais de
pessoas sorridentes, elas têm aproveitado a vida e se sentem felizes. Ou, como
você aborda em uma crônica, hoje mais importante do que ser é parecer feliz?
O
perfil é a sua apresentação para o mundo, o que implica um certo trabalho de
falsificação da sua imagem e até autoimagem. Nas redes sociais, a felicidade dá
status. Mas esse fenômeno é anterior ao Facebook. Se você olhar as fotografias
de família do final do século 19, início do 20, todo mundo colocava a melhor
roupa e posava seriíssimo. Ninguém estava lá para mostrar que era feliz. Ao
contrário, era um momento solene. É a partir da câmera fotográfica portátil que
aparecem as fotos das férias felizes, com todo mundo sempre sorridente.
E a gente olha para elas e pensa: “Eu era feliz e não
sabia”.
Não
gosto dessa frase porque contém uma cota de lamentação. E acho que a gente
nunca deveria lamentar nada, em particular as próprias decisões. Acredito que,
no fundo, a gente quase sempre toma a única decisão que poderia tomar naquelas
circunstâncias. Então, não vale a pena lamentar o passado. Mas é verdade que
existe isso.
As escolhas ao longo da vida geram insegurança e medo. Em
relação a isso, você diz que há dois tipos de pessoa: os
“maximizadores”, que querem ter certeza antes de que aquela é a opção
certa, e a turma do “suficientemente bom”. O segundo grupo sofre
menos?
Tem
uma coisa interessante no “maximizador”: é como se ele acreditasse
que existe o objeto mais adequado de todos, aquele que é perfeito. Mas é claro
que não existe.
A busca da perfeição não gera frustração, pois sempre haverá
algo que a gente perdeu?
Freud
dizia que o único objeto verdadeiramente insubstituível para a gente é o
perdido. E não é que foi perdido porque caiu do bolso. Ele fala daquilo que
nunca tivemos. Então, faz sentido que nossa relação com o desejo seja esta:
imaginamos existir algo que nunca tivemos, mas que teria nos satisfeito
totalmente. Só não sabemos o que é.
Como nos livrar desse sentimento?
Temos
de tornar cada uma de nossas escolhas interessante. Isso só é possível quando
temos simpatia pela vida e pelos outros – o que parece básico, mas não é no
mundo de hoje. Não por acaso, o grande espantalho do nosso século é a
depressão. A falta de interesse pelo mundo e pelos outros é o que pode nos
acontecer de pior.
Complica ainda mais o fato de, como você já abordou,
enfrentarmos um dilema eterno: desejamos a estabilidade e também a aventura.
Então, entramos em uma relação ou um emprego, mas sofremos porque nos sentimos
presos e achamos que estamos deixando de viver grandes aventuras. Isso tem
solução?
Não
sei se tem solução. A gente vive mesmo eternamente nesse conflito. Agora, como
cada um o administra é outra história. Pode-se optar por uma espécie de inércia
constante, que será sempre acompanhada da sensação de que você está realmente
desperdiçando seu tempo e sua vida, porque toda a aventura está acontecendo lá
fora e, a cada instante, você está perdendo os cavalos encilhados que passam e
não passarão nunca mais. Viver dessa maneira não é uma das opções. Mas você
pode também, em vez disso, permitir se perder.
Permitir se perder no sentido de transformar a vida em uma
eterna aventura?
Mas
também nesse caso você terá coisas a lamentar. Eu, pessoalmente, fui mais por
esse caminho. Mas o preço foi muito alto. Por exemplo, eu não estive presente
na morte de nenhum dos meus entes próximos, porque morava em outro país e
sempre chegava atrasado, no avião do dia seguinte. Hoje, por sorte, meu filho –
que é grande, tem 30 anos – vive perto de mim. Por acaso, ele decidiu vir para
o Brasil. Mas não o vi crescer realmente.
Para ser feliz, enfim, o segredo é não buscar a felicidade?
Isso
eu acho uma excelente ideia. A felicidade, em si, é realmente uma preocupação
desnecessária. Se meu filho dissesse “quero ser feliz”, eu me
preocuparia seriamente.
Preferia que dissesse o quê?

gostaria que ele me dissesse: “Estou a fim de…” A partir disso,
qualquer coisa é válida. O que angustia é ver falta de desejo nas pessoas, em
particular nos jovens. Agora, se ele está a fim de algo, mesmo que isso pareça
muito distante do campo do possível dentro da vida que leva, eu acho ótimo. 

Psicóloga Ana Amorim de Farias

CRP 06/39859-9

Compartilhe

Facebook
WhatsApp
E-mail