* Texto extraído do site do psicanalista Jorge Forbes e publicado na revista Psique nº 64, abril/2011
“Vocês
ponham o divã virado para a porta. Assim, se o paciente quiser sair sem
olhar para vocês, ele simplesmente se levanta, abre a porta e vai
embora”.
ponham o divã virado para a porta. Assim, se o paciente quiser sair sem
olhar para vocês, ele simplesmente se levanta, abre a porta e vai
embora”.
Eu
estava no começo de meus estudos de psicanálise, mais ou menos na
metade do meu curso de medicina. Quem me ensinava a posição correta no
divã da sala de análise era um consagrado psicanalista da sociedade
local, terno cinza, camisa branca, cara sisuda de conteúdo, com riso
comedido. E ele não ficava aí: a esta pérola da posição do móvel se
somavam outros ordenamentos práticos para o correto “setting
terapêutico”, como assim era chamado. Preferencialmente não se devia
estender a mão ao paciente, o menor contato físico poderia ser
desencadeador de fantasias ancestrais perigosíssimas ao tratamento. Por
razão semelhante, nada de fotografias na sua sala. Imagine um
psicanalista que mostrasse sua família ou seus amigos, quão perturbador
poderia ser. Melhor mesmo é que nem livros tivesse, para não revelar seu
gosto literário, ou sua filiação científica. Vestir-se deveria ser
sempre o mais discreto possível: homens de gravata, mulheres de saia
abaixo do joelho, sempre de cores pálidas. Não atender, ah, isso era
fundamental, não atender pessoas da mesma família, para que a
transferência não se misturasse nas intricadas redes afetivo-familiares.
Aliás, era melhor também não atender ninguém que morasse nas cercanias
do consultório ou da casa do analista, pois já imaginou como seria
horroroso, disruptivo mesmo, um paciente ver seu analista de bermudas em
uma manhã de domingo comprando um jornal na banca da esquina?
estava no começo de meus estudos de psicanálise, mais ou menos na
metade do meu curso de medicina. Quem me ensinava a posição correta no
divã da sala de análise era um consagrado psicanalista da sociedade
local, terno cinza, camisa branca, cara sisuda de conteúdo, com riso
comedido. E ele não ficava aí: a esta pérola da posição do móvel se
somavam outros ordenamentos práticos para o correto “setting
terapêutico”, como assim era chamado. Preferencialmente não se devia
estender a mão ao paciente, o menor contato físico poderia ser
desencadeador de fantasias ancestrais perigosíssimas ao tratamento. Por
razão semelhante, nada de fotografias na sua sala. Imagine um
psicanalista que mostrasse sua família ou seus amigos, quão perturbador
poderia ser. Melhor mesmo é que nem livros tivesse, para não revelar seu
gosto literário, ou sua filiação científica. Vestir-se deveria ser
sempre o mais discreto possível: homens de gravata, mulheres de saia
abaixo do joelho, sempre de cores pálidas. Não atender, ah, isso era
fundamental, não atender pessoas da mesma família, para que a
transferência não se misturasse nas intricadas redes afetivo-familiares.
Aliás, era melhor também não atender ninguém que morasse nas cercanias
do consultório ou da casa do analista, pois já imaginou como seria
horroroso, disruptivo mesmo, um paciente ver seu analista de bermudas em
uma manhã de domingo comprando um jornal na banca da esquina?
Se
para ser analista fosse necessário cumprir estas normas que para mim,
apesar da pouca idade, me pareciam compor um forte bestialógico, eu ia
ter que escolher outra coisa para fazer na vida. Minha crítica não
recaía só sobre o cumprimento bobo dessa cartilha, mas especialmente
sobre a ideologia que a sustentava. É fácil perceber que tudo está ali
pensado para não “perturbar” o paciente. Ora, ora, uma análise foi feita
para fazer dormir, ou para acordar? Assim descrita, ela serviria para
não incomodar o paciente em seu sintoma, em seu sono irresponsável e
inconsciente. Continuando, percebe-se que havia uma tentativa de
transformar o analista, sua pessoa, seu corpo, em algo diáfano,
invisível, o mais perto possível da famosa “tela em branco” sobre a qual
o paciente projetaria suas angústias, na certeza de não vê-las
misturadas com a pessoa que o atendia. Triste e capenga visão do que
seja a intimidade de uma pessoa: a lombada de seus livros? Suas fotos?
Seus amigos? Sua roupa? Não, nada disso, esses traços podem ser
indicações, alusões – e quantas vezes falsas! – mas não dizem do cerne
de uma pessoa. Aliás, aí está um dos desafios da psicanálise, o de levar
a perceber que todas essas características são apoios provisórios da
identidade que um analisando deve ir questionando, um a um, em seu
trabalho analítico, desembaraçando-se do peso de suas identificações,
para poder alcançar o mais íntimo do seu ser, algo de uma estranheza
familiar, como diria Freud.
para ser analista fosse necessário cumprir estas normas que para mim,
apesar da pouca idade, me pareciam compor um forte bestialógico, eu ia
ter que escolher outra coisa para fazer na vida. Minha crítica não
recaía só sobre o cumprimento bobo dessa cartilha, mas especialmente
sobre a ideologia que a sustentava. É fácil perceber que tudo está ali
pensado para não “perturbar” o paciente. Ora, ora, uma análise foi feita
para fazer dormir, ou para acordar? Assim descrita, ela serviria para
não incomodar o paciente em seu sintoma, em seu sono irresponsável e
inconsciente. Continuando, percebe-se que havia uma tentativa de
transformar o analista, sua pessoa, seu corpo, em algo diáfano,
invisível, o mais perto possível da famosa “tela em branco” sobre a qual
o paciente projetaria suas angústias, na certeza de não vê-las
misturadas com a pessoa que o atendia. Triste e capenga visão do que
seja a intimidade de uma pessoa: a lombada de seus livros? Suas fotos?
Seus amigos? Sua roupa? Não, nada disso, esses traços podem ser
indicações, alusões – e quantas vezes falsas! – mas não dizem do cerne
de uma pessoa. Aliás, aí está um dos desafios da psicanálise, o de levar
a perceber que todas essas características são apoios provisórios da
identidade que um analisando deve ir questionando, um a um, em seu
trabalho analítico, desembaraçando-se do peso de suas identificações,
para poder alcançar o mais íntimo do seu ser, algo de uma estranheza
familiar, como diria Freud.
Já
estava pronto para fazer outra coisa na vida, como escrevi – pensei em
ser gastroenterologista, pois percebia que a maioria das queixas desse
sistema se relacionava mais aos sapos comidos, que a pratos mal
preparados – quando me deparei na Livraria Francesa da Rua Barão de
Itapetininga, em São Paulo, com um livro de um tal de Lacan, que alguém
me havia assoprado muito levemente, só dizendo que tinha ouvido falar
que ele vinha afirmando coisas novas na psicanálise, lá pela Paris. Abri
seu livro com o título provocador de “Écrits”, como se abre livros ao
léu nas estantes das livrarias e me deparei com uma frase impactante, no
capítulo intitulado “A direção do Tratamento”: “O analista faria melhor
situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”. Claro que naquele
momento não entendi muita coisa desse quase aforismo, mas entendi o
suficiente para me convencer que havia uma outra psicanálise possível,
diferente daquela cheia de rituais de isolamento obsessivos, e que eu
poderia continuar em meu desejo de ser psicanalista. Apostei:
literalmente embarquei e fui conhecer de perto esse verdadeiro
acontecimento Lacan. Não me arrependi, continuo a viagem na certeza
sempre mais clara que uma intimidade não se apreende nem nos detalhes de
decoração, nem nas vestimentas, mas na ética de se responsabilizar, ou
seja, de responder por esse desejo que sempre nos interroga. E que viva a
Psicanálise, além de qualquer standard.
estava pronto para fazer outra coisa na vida, como escrevi – pensei em
ser gastroenterologista, pois percebia que a maioria das queixas desse
sistema se relacionava mais aos sapos comidos, que a pratos mal
preparados – quando me deparei na Livraria Francesa da Rua Barão de
Itapetininga, em São Paulo, com um livro de um tal de Lacan, que alguém
me havia assoprado muito levemente, só dizendo que tinha ouvido falar
que ele vinha afirmando coisas novas na psicanálise, lá pela Paris. Abri
seu livro com o título provocador de “Écrits”, como se abre livros ao
léu nas estantes das livrarias e me deparei com uma frase impactante, no
capítulo intitulado “A direção do Tratamento”: “O analista faria melhor
situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”. Claro que naquele
momento não entendi muita coisa desse quase aforismo, mas entendi o
suficiente para me convencer que havia uma outra psicanálise possível,
diferente daquela cheia de rituais de isolamento obsessivos, e que eu
poderia continuar em meu desejo de ser psicanalista. Apostei:
literalmente embarquei e fui conhecer de perto esse verdadeiro
acontecimento Lacan. Não me arrependi, continuo a viagem na certeza
sempre mais clara que uma intimidade não se apreende nem nos detalhes de
decoração, nem nas vestimentas, mas na ética de se responsabilizar, ou
seja, de responder por esse desejo que sempre nos interroga. E que viva a
Psicanálise, além de qualquer standard.
Jorge Forbes é psicanalista e médico psiquiatra. É analista
membro da Escola Brasileira de Psicanálise (A.M.E.), preside o IPLA –
Instituto da Psicanálise Lacaniana – e dirige a Clínica de Psicanálise
do Centro do Genoma Humano da US
Fonte: JORGE FORBES- Clínica e Pesquisa em Psicanálise
(artigo publicado na revista Psique nº 64, abril 2011)