Belo texto de Clarice, sobre o sentimento de pertença.
Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a
criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já
começou. Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de
pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar
sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já
começou. Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de
pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar
sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me
acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se
contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que
me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como
sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma.
acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se
contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que
me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como
sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma.
E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser
gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de “solidão de não
pertencer” começou a me invadir como heras num muro. Se meu desejo mais antigo
é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações?
Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é
por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar
àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E
uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente
todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem
dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por
uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com
papel de presente os meus sentimentos.
gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de “solidão de não
pertencer” começou a me invadir como heras num muro. Se meu desejo mais antigo
é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações?
Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é
por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar
àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E
uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente
todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem
dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por
uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com
papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a
algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em
mim de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja
inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa. Quase consigo me visualizar no
berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de
precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar,
eu nasci e fiquei apenas: nascida. No entanto fui preparada para ser dada à luz
de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição
bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma
doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não
curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma
missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma
guerra e eu tivesse desertado.
algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em
mim de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja
inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa. Quase consigo me visualizar no
berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de
precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar,
eu nasci e fiquei apenas: nascida. No entanto fui preparada para ser dada à luz
de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição
bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma
doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não
curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma
missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma
guerra e eu tivesse desertado.
Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e
tê-los traído na grande esperança.
tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se
tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria
pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie
de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que
por vergonha não podia ser conhecido.
tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria
pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie
de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que
por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para
me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é
viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os
últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo
que caminho!
me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é
viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os
últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo
que caminho!
(Clarice Lispector)