PSICANÁLISE & LITERATURA: Clarice Lispector: Inquietações do inacessível


Clarice Lispector, uma das
personalidades mais inteligentes e sensíveis do cenário cultural brasileiro,
publicou por muitos anos uma coluna semanal no “Jornal do Brasil”, que foram
reunidos no livro “A DESCOBERTA DO MUNDO”. Nestas crônicas, Clarice se desvelava:
“Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna, estou de
algum modo me dando a conhecer.” No texto de 29/8/1970, Clarice revela por meio
de uma linguagem clara e simples, na forma de perguntas e respostas, a
densidade e profundidade de seu mundo subjetivo.
       
              “Perguntas e Respostas para um
Caderno Escolar”
– Qual é a coisa mais antiga do
mundo?
 Poderia dizer que é Deus
que sempre existiu.
– Qual é a coisa mais bela?
O instante de inspiração.
– E Deus quando criou o Universo
não o fez no momento de Sua maior inspiração?
O Universo sempre existiu. O
cosmos é Deus.
– Qual das coisas é a maior?
O amor, que é o maior dos
mistérios.
– Qual das coisas é a mais
constante?
O medo. Que pena que eu não possa
responder que é a esperança.
– Qual o melhor dos sentimentos?
O de amar e ao mesmo tempo ser
amada, o que parece apenas um lugar-comum mas é uma de minhas verdades.
– Qual é o sentimento mais rápido?
O sentimento mais rápido, que
chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem
um no outro a promessa de um grande amor.
– Qual é a mais forte das coisas?
O instinto de ser.
– O que é mais fácil de se fazer?
Existir, depois que passa o medo.
– Qual é a coisa mais difícil de
realizar?
A própria relativa felicidade que
vem do conhecimento de si mesmo. (depois as perguntas se tornaram mais
complicadas.)
– Você é tímida como escritora?
Na hora de escrever não sou
tímida. Pelo contrário: Entrego-me toda. Como pessoa sou às vezes inibida.
– Como nascem suas histórias?
Elas são planejadas antes do ato de escrever?
Não, vão se desenvolvendo à
medida que escrevo, e nascem quase sempre da mesma sensação, de uma palavra
ouvida, de um nada ainda nebuloso.
– Como é que você se sente
durante o ato de escrever? E depois de escrito o livro, você se preocupa com o
destino dele?
Enquanto escrevo o bom é que não
dou mostra da grande excitação de que às vezes sou tomada. E por mais difícil
que seja o trabalho, sinto uma felicidade dolorosa, pois, com os nervos
aguçados, fico sem a cobertura de um cotidiano banal. E depois de pronto o
livro, de entregue ao editor, posso dizer como Julio Cortázar: retesa o
arco ao máximo enquanto escreve e depois o solta de um só golpe e vai beber
vinho com os amigos. A flecha já anda pelo ar, e se cravará ou não cravará no
alvo; só os imbecis podem pretender modificar sua trajetória ou correr atrás
dela para dar-lhe empurrões suplementares com vistas à eternidade e às edições
internacionais.
– O que acontece com a pessoa
encabulada que você é, enquanto tem a ousadia de escrever?
Desabrocho em coragem, embora a
vida diária continue tímida. Aliás, sou tímida em determinados momentos, pois
fora destes tenho apenas o recato que também faz parte de mim. Sou uma
ousada-encabulada: depois de grande ousadia é que me encabulo.
– Você conhece os seus maiores
defeitos?
Os maiores não conto porque eu
mesma me ofendo. Mas posso falar naqueles que mais prejudicam a minha vida. Por
exemplo, a grande fome de tudo, de onde decorre uma impaciência insuportável
que também me prejudica.
– Você sente e participa dos
problemas da vida nacional?
Como brasileira seria de
estranhar se eu não sentisse e não participasse da vida de meu país. Não
escrevo sobre problemas sociais, mas eu os vivo intensamente e, já em criança,
me abalava inteira com os problemas que via ao vivo.
[In: Clarice Lispector, A
Descoberta do Mundo – Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pag.308.]
O Espaço Cultural da SBPRP convida a todos para uma interlocução entre a Literatura e a Psicanálise.



Psicóloga Ana Amorim de Farias

CRP 06/39859-9

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