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“Quem vai olhar para um modelo fora de linha como eu?” “Como promover a otimização de meus finais de semana?” “Fiz as contas: com o que gastei na análise de meu filho já poderia ter trocado de carro duas vezes”
A psicanalista Maria Rita Kehl afirma que a clínica tem sido “contaminada” por critérios de mercado e que o universo familiar gerador de valores está “totalmente atravessado pela linguagem da eficiência comercial”
“O aparente apagamento da
dívida simbólica não nos tornou menos culpados; ao contrário: hoje escutamos
pessoas que se dizem culpadas de tudo.”
dívida simbólica não nos tornou menos culpados; ao contrário: hoje escutamos
pessoas que se dizem culpadas de tudo.”
Dizem que Karl Marx
descobriu o inconsciente três décadas antes de Freud. Se a afirmação não é
rigorosamente exata, não deixa de fazer sentido desde que Marx, no capítulo de
“O Capital” sobre o fetiche da mercadoria, estabeleceu dois parâmetros
conceituais imprescindíveis para explicar a transformação que o capitalismo
produziu na subjetividade. São eles os conceitos de fetichismo e alienação,
ambos tributários da descoberta da mais-valia ou do inconsciente, como queiram.
descobriu o inconsciente três décadas antes de Freud. Se a afirmação não é
rigorosamente exata, não deixa de fazer sentido desde que Marx, no capítulo de
“O Capital” sobre o fetiche da mercadoria, estabeleceu dois parâmetros
conceituais imprescindíveis para explicar a transformação que o capitalismo
produziu na subjetividade. São eles os conceitos de fetichismo e alienação,
ambos tributários da descoberta da mais-valia ou do inconsciente, como queiram.
A rigor, não há grande
diferença entre o emprego dessas duas palavras na psicanálise e no materialismo
histórico. Em Freud, o fetiche organiza a gestão perversa do desejo sexual e,
de forma menos evidente, de todo o desejo humano; já a alienação não passa de
efeito da divisão do sujeito, ou seja, da existência do inconsciente. Em Marx,
o fetiche da mercadoria, fruto da expropriação alienada do trabalho, tem um
papel decisivo na produção “inconsciente” da mais-valia.
diferença entre o emprego dessas duas palavras na psicanálise e no materialismo
histórico. Em Freud, o fetiche organiza a gestão perversa do desejo sexual e,
de forma menos evidente, de todo o desejo humano; já a alienação não passa de
efeito da divisão do sujeito, ou seja, da existência do inconsciente. Em Marx,
o fetiche da mercadoria, fruto da expropriação alienada do trabalho, tem um
papel decisivo na produção “inconsciente” da mais-valia.
O sujeito das duas
teorias é um só: aquele que sofre e se indaga sobre a origem inconsciente de
seus sintomas é o mesmo que desconhece, por efeito dessa mesma inconsciência,
que o poder encantatório das mercadorias é condição não de sua riqueza, mas de
sua miséria material e espiritual. Se a sociedade em que vivemos se diz “de
mercado” é porque a mercadoria é o grande organizador do laço social,
teorias é um só: aquele que sofre e se indaga sobre a origem inconsciente de
seus sintomas é o mesmo que desconhece, por efeito dessa mesma inconsciência,
que o poder encantatório das mercadorias é condição não de sua riqueza, mas de
sua miséria material e espiritual. Se a sociedade em que vivemos se diz “de
mercado” é porque a mercadoria é o grande organizador do laço social,
Não seria necessário
recorrer a Marx e Freud para defender o caráter político das formações do
inconsciente. Bastaria citar a frase “o inconsciente é a política”, proferida
por Lacan, que convocou os psicanalistas a se empenharem por “alcançar em seu
horizonte a subjetividade de sua época”. Mas insisto em recorrer aos clássicos
para lembrar aos lacanianos extremados que a verdade não nasceu por geração
espontânea da cabeça de Lacan.
recorrer a Marx e Freud para defender o caráter político das formações do
inconsciente. Bastaria citar a frase “o inconsciente é a política”, proferida
por Lacan, que convocou os psicanalistas a se empenharem por “alcançar em seu
horizonte a subjetividade de sua época”. Mas insisto em recorrer aos clássicos
para lembrar aos lacanianos extremados que a verdade não nasceu por geração
espontânea da cabeça de Lacan.
Crise do sujeito
Se Freud fundou a
psicanálise ao vislumbrar; no horizonte de sua época, as razões da insatisfação
histérica, é nossa vez de tentar escutar o que mudou desde então, à medida que
a norma produtiva/repressiva foi sendo substituída pela norma do gozo e do
consumo.
psicanálise ao vislumbrar; no horizonte de sua época, as razões da insatisfação
histérica, é nossa vez de tentar escutar o que mudou desde então, à medida que
a norma produtiva/repressiva foi sendo substituída pela norma do gozo e do
consumo.
Alguns sintomas, na
atualidade, têm se tornado mais frequentes e mais incômodos do que as formas
consagradas das neuroses e das psicoses no século passado. Hoje as drogadições,
os transtornos alimentares, os quadros delinquenciais e as depressões graves
desafiam os analistas a repensar a subjetividade. Isso não implica
necessariamente que as antigas estruturas clínicas tenham se tornado obsoletas.
atualidade, têm se tornado mais frequentes e mais incômodos do que as formas
consagradas das neuroses e das psicoses no século passado. Hoje as drogadições,
os transtornos alimentares, os quadros delinquenciais e as depressões graves
desafiam os analistas a repensar a subjetividade. Isso não implica
necessariamente que as antigas estruturas clínicas tenham se tornado obsoletas.
O que encontramos hoje
nos consultórios psicanalíticos é um novo sujeito? Ou são novas expressões
sintomáticas que buscam responder ao velho conflito entre as pulsões e o
supereu este representante das interdições e das moções de gozo, no psiquismo?
O sujeito contemporâneo está mais próximo do perverso, que sabe driblar a falta
pelo uso do fetiche? Ou é ainda o neurótico comum que, em vez de tentar seguir
à risca a norma repressiva, tenta obedecer a um mestre fetichista que lhe
ordena a transgredir e gozar além da medida?
nos consultórios psicanalíticos é um novo sujeito? Ou são novas expressões
sintomáticas que buscam responder ao velho conflito entre as pulsões e o
supereu este representante das interdições e das moções de gozo, no psiquismo?
O sujeito contemporâneo está mais próximo do perverso, que sabe driblar a falta
pelo uso do fetiche? Ou é ainda o neurótico comum que, em vez de tentar seguir
à risca a norma repressiva, tenta obedecer a um mestre fetichista que lhe
ordena a transgredir e gozar além da medida?
Por enquanto, tenho
escutado, em média, neuróticos mais ou menos estruturados tentando corresponder
à suposta normalidade vigente, a qual – esta sim – já não é mais a mesma nem do
tempo de Freud, nem do de Lacan.
escutado, em média, neuróticos mais ou menos estruturados tentando corresponder
à suposta normalidade vigente, a qual – esta sim – já não é mais a mesma nem do
tempo de Freud, nem do de Lacan.
A “crise do sujeito”,
outra face da chamada “crise da referência paterna”, corresponde, a meu ver, ao
deslocamento e à pulverização das referências que sustentavam, até meados do século
passado, a transmissão da lei. Não se trata da ausência da lei na atualidade,
mas da fragilidade das formações imaginárias que davam sentido e consistência à
interdição do incesto – a qual, desde Freud, é considerada condição universal
de inclusão dos sujeitos na chamada vida civilizada, seja ela qual for.
outra face da chamada “crise da referência paterna”, corresponde, a meu ver, ao
deslocamento e à pulverização das referências que sustentavam, até meados do século
passado, a transmissão da lei. Não se trata da ausência da lei na atualidade,
mas da fragilidade das formações imaginárias que davam sentido e consistência à
interdição do incesto – a qual, desde Freud, é considerada condição universal
de inclusão dos sujeitos na chamada vida civilizada, seja ela qual for.
Se o homem contemporâneo
sofre do que [o psicanalista francês] Charles Melman chamou de falta de um
centro de gravidade, é porque as referências tradicionais – Deus, pátria,
família, trabalho, pai – pulverizaram-se em milhares de referências optativas
para uso privado do freguês.
sofre do que [o psicanalista francês] Charles Melman chamou de falta de um
centro de gravidade, é porque as referências tradicionais – Deus, pátria,
família, trabalho, pai – pulverizaram-se em milhares de referências optativas
para uso privado do freguês.
Culpa e frustração
O “self-made man” dos
primórdios do capitalismo deixou de ser o trabalhador esforçado e econômico
para se tornar o gestor de seu próprio “perfil do consumidor” a partir de
modelos em oferta no mercado.
primórdios do capitalismo deixou de ser o trabalhador esforçado e econômico
para se tornar o gestor de seu próprio “perfil do consumidor” a partir de
modelos em oferta no mercado.
Cada um tem o direito e
o dever de compor a seu gosto um campo próprio de referências, de estilo, de
ideais. Aparentemente, não devemos mais nada ao pai e ao grupo social a que
pertencemos, dos quais imaginamos prescindir para saber quem somos.
o dever de compor a seu gosto um campo próprio de referências, de estilo, de
ideais. Aparentemente, não devemos mais nada ao pai e ao grupo social a que
pertencemos, dos quais imaginamos prescindir para saber quem somos.
Este aparente apagamento
da dívida simbólica não nos tornou menos culpados; ao contrário: hoje escutamos
pessoas que se dizem culpadas de tudo. Não citarei, em hipótese alguma, falas
dos que se analisam comigo: daí o caráter ligeiramente caricato dos exemplos
que se seguem, como expressões genéricas da transformação que o mercado
produziu nos discursos.
da dívida simbólica não nos tornou menos culpados; ao contrário: hoje escutamos
pessoas que se dizem culpadas de tudo. Não citarei, em hipótese alguma, falas
dos que se analisam comigo: daí o caráter ligeiramente caricato dos exemplos
que se seguem, como expressões genéricas da transformação que o mercado
produziu nos discursos.
A antiga donzela
angustiada com as manifestações involuntárias de sua sexualidade reprimida –
lembrem-se de que Freud relacionou o tabu da virgindade e a moral sexual entre
as causas do mal-estar; no início do século 20 – hoje se sente culpada por não
usufruir tanto do sexo, das drogas e do “rock and funk” quanto deveria. O
obsessivo escrupuloso, acossado por fantasias perversas, agora se queixa de seu
bom comportamento: queria ser um predador sem escrúpulos, eliminar os rivais,
abusar sem pudor das mulheres.
angustiada com as manifestações involuntárias de sua sexualidade reprimida –
lembrem-se de que Freud relacionou o tabu da virgindade e a moral sexual entre
as causas do mal-estar; no início do século 20 – hoje se sente culpada por não
usufruir tanto do sexo, das drogas e do “rock and funk” quanto deveria. O
obsessivo escrupuloso, acossado por fantasias perversas, agora se queixa de seu
bom comportamento: queria ser um predador sem escrúpulos, eliminar os rivais,
abusar sem pudor das mulheres.
As pessoas vivem
culpadas por não conseguirem gozar tanto quanto lhes é exigido. Culpadas por
não alcançar o sucesso e a popularidade instantâneos, por perderem tempo em
sessões de análise – culpados por sofrer. O sofrimento não tem mais o prestígio
que lhe conferia o cristianismo. Sofrer não redime a dívida; ao contrário,
reduplica os juros.
culpadas por não conseguirem gozar tanto quanto lhes é exigido. Culpadas por
não alcançar o sucesso e a popularidade instantâneos, por perderem tempo em
sessões de análise – culpados por sofrer. O sofrimento não tem mais o prestígio
que lhe conferia o cristianismo. Sofrer não redime a dívida; ao contrário,
reduplica os juros.
Sem recurso à referência
a autoridades repressivas que faziam obstáculo aos prazeres, as pessoas têm
dificuldades em justificar seus sintomas. Não encontram a quem endereçar suas
queixas ou apoiar seus ideais.
a autoridades repressivas que faziam obstáculo aos prazeres, as pessoas têm
dificuldades em justificar seus sintomas. Não encontram a quem endereçar suas
queixas ou apoiar seus ideais.
“Meus pais são amigos,
meus professores são legais, ninguém me impõe ou me impede nada: eu sou um
otário porque não consigo ser feliz”. O sentimento de culpa, como escreve [o
sociólogo francês Alain] Ehrenberg, tomou a forma de sentimento de
insuficiência.
meus professores são legais, ninguém me impõe ou me impede nada: eu sou um
otário porque não consigo ser feliz”. O sentimento de culpa, como escreve [o
sociólogo francês Alain] Ehrenberg, tomou a forma de sentimento de
insuficiência.
Assim, a resposta à dor
psíquica não é buscada pela via da palavra, mas pelo consumo abusivo dos
psicofármacos que prometem adicionar a substância faltante ao psiquismo
deficitário. O remédio age em lugar do sujeito, que não se vê responsável por
seu desejo e por suas escolhas.
psíquica não é buscada pela via da palavra, mas pelo consumo abusivo dos
psicofármacos que prometem adicionar a substância faltante ao psiquismo
deficitário. O remédio age em lugar do sujeito, que não se vê responsável por
seu desejo e por suas escolhas.
Não se concebe a vida
como um percurso de risco que inclui altos e baixos, incertezas, acertos,
dúvida, sorte, acaso. A vida é um empreendimento cujos resultados devem ser
garantidos desde os primeiros anos – daí o surgimento de uma geração de
crianças de agenda cheia de atividades preparatórias para a Mura competição por
uma vaga promissora no mercado de trabalho.
como um percurso de risco que inclui altos e baixos, incertezas, acertos,
dúvida, sorte, acaso. A vida é um empreendimento cujos resultados devem ser
garantidos desde os primeiros anos – daí o surgimento de uma geração de
crianças de agenda cheia de atividades preparatórias para a Mura competição por
uma vaga promissora no mercado de trabalho.
Não por acaso, essas
mesmas crianças estarão mais predispostas à depressão na adolescência,
esvaziadas de imaginação, de vida interior, de capacidade criativa.
mesmas crianças estarão mais predispostas à depressão na adolescência,
esvaziadas de imaginação, de vida interior, de capacidade criativa.
O universo amoroso ou
familiar que substitui o espaço público como gerador de valores está totalmente
atravessado pela linguagem da eficiência comercial. “Quem vai olhar para um
modelo fora de linha como eu?” “Como promover a otimização de meus finais de
semana?” “Fiz as contas: com o que gastei na análise de meu filho já poderia
ter trocado de carro duas vezes” (nesse caso, o analista sente-se tentado a
sugerir que, de fato, ficaria mais em conta trocar de filho).
familiar que substitui o espaço público como gerador de valores está totalmente
atravessado pela linguagem da eficiência comercial. “Quem vai olhar para um
modelo fora de linha como eu?” “Como promover a otimização de meus finais de
semana?” “Fiz as contas: com o que gastei na análise de meu filho já poderia
ter trocado de carro duas vezes” (nesse caso, o analista sente-se tentado a
sugerir que, de fato, ficaria mais em conta trocar de filho).
Vale ainda mencionar o
estranho silêncio, nos consultórios dos analistas, em torno do eterno mistério
do desejo e dá diferença sexual. A falta de objeto que caracteriza a atração
erótica parece ter sido ofuscada pela onipresença de imagens sexuais nos
outdoors, na televisão, nas lojas, nas revistas – por onde olhe, o sujeito se
depara com o sexual desvelado que se oferece e o convida.
estranho silêncio, nos consultórios dos analistas, em torno do eterno mistério
do desejo e dá diferença sexual. A falta de objeto que caracteriza a atração
erótica parece ter sido ofuscada pela onipresença de imagens sexuais nos
outdoors, na televisão, nas lojas, nas revistas – por onde olhe, o sujeito se
depara com o sexual desvelado que se oferece e o convida.
As fantasias sexuais são
todas prêt-à-porter. Seria ok, se o suposto desvelamento do mistério não
produzisse sintomas paradoxais. O tédio, em primeiro lugar, entre jovens que se
esforçam desde cedo para dar mostras de grande eficiência e voracidade sexuais.
As intervenções cirúrgicas no corpo, de consequências por vezes bizarras, em
rapazes e moças que pensam que a imagem corporal perfeita seja a solução para o
mistério que mobiliza o desejo.
todas prêt-à-porter. Seria ok, se o suposto desvelamento do mistério não
produzisse sintomas paradoxais. O tédio, em primeiro lugar, entre jovens que se
esforçam desde cedo para dar mostras de grande eficiência e voracidade sexuais.
As intervenções cirúrgicas no corpo, de consequências por vezes bizarras, em
rapazes e moças que pensam que a imagem corporal perfeita seja a solução para o
mistério que mobiliza o desejo.
A reificação do sujeito
identificado como mais uma mercadoria se revela no medo generalizado de não
agradar. O mistério do desejo persiste, assim como não deixa de existir o
inconsciente: mas é como se suas manifestações não interrogassem mais os
sujeitos.
identificado como mais uma mercadoria se revela no medo generalizado de não
agradar. O mistério do desejo persiste, assim como não deixa de existir o
inconsciente: mas é como se suas manifestações não interrogassem mais os
sujeitos.
Maria Rita Kehl é
psicanalista e ensaísta, autora de “O Tempo e o Cão” (ed Boitempo)
psicanalista e ensaísta, autora de “O Tempo e o Cão” (ed Boitempo)