Em “Os Olhos de Laura”, o psicanalista Juan-David Nasio busca explicar por que pessoas mentalmente saudáveis têm seus instantes de loucura
Especial para o Jornal Opção
Uma criança segura uma pomba numa das mãos. Seus olhos são grandes e tristes, olham para quem os encara fora do quadro onde sua existência artística se encerra. O quadro fica em frente à cama da irmã de Laura e a criança a observa noite e dia com seu olhar sombrio. A empregada usa a criança para fazer com que as irmãs a obedeçam; do contrário, a criança tomará seu lugar. E o que acontece com a irmã de Laura? Comete suicídio, embora já crescida, depois de viver muitos anos sob a mira da criança angustiada, presa no quadro.
Esse breve relato, digno de um curioso drama psicológico, poderia ser retratado no cinema ou na literatura, afinal Laura é um nome sonoro e portentosamente literário; a irmã suicida não é nomeada, mas é causa e efeito de um sofrimento e de uma saudade carregados por alguns anos; e o quadro, simples objeto colocado num quarto durante uma infância, torna-se personagem ausente, porém doloroso, um símbolo incubado no inconsciente, tão terrível por seu rastejar atônico, tranquilo, demorado, que acaba destruindo o sujeito afetado por sua insidiosa incubação.
Em “Os Olhos de Laura – Somos Todos Loucos em Algum Recanto de Nossas Vidas” (Zahar, 168 páginas, tradução de Claudia Berliner), o psicanalista e psiquiatra francês J.-D. Nasio usou o caso de Laura e sua irmã para mergulhar na questão das defesas psíquicas contra fatos penosos. Após uma sessão com Laura, onde não pôde prever a desolação da paciente, Nasio viu mais do que uma mulher simplesmente em prantos, ele viu a emoção destacada em seus olhos, viu “olhos chorarem”. Na sessão seguinte, os olhos de Laura se transformam nos olhos da irmã, também triste com a imagem do quadro que ambas viam durante a infância, impregnados em suas mentes. A história do quadro acende no analista o conceito de “foraclusão local”, sobre o qual o livro se alicerça.
Fundamentado por Freud e Lacan, Nasio antes prefacia sobre a pergunta “o que é estar louco?”, imprescindível para dar seguimento aos conceitos então explorados no restante das páginas e explicar por que o subtítulo do livro estende a psicose a todas as pessoas, ainda que de forma passageira. Estar louco “é ter a certeza cega da verdade do que se pensa e do que se faz […], é ir obstinadamente atrás da nossa ideia fixa e falsa que se repete, toma conta de nós e nos impele a agir. Estar louco é não ouvir mais nada além do que se quer ouvir”. Nasio explica que a loucura ou psicose é essa ruptura com a realidade: “A mente cega curva a realidade à sua ideia, ao invés de submeter sua ideia à realidade”. Muitas vezes essa ruptura é passageira, o que ele chama de “loucura efêmera”, lembrando que todos conhecemos pessoas — incluindo nós mesmos — que apesar de coerentes, se mostraram em algum momento transtornadas, cometendo atos desproporcionais, “movidas pela certeza de estarem com a verdade”. Para concluir a razão pela qual o autor afirma que mesmo equilibrada, uma pessoa esconde “uma fantasia virulenta prestes a explodir num acesso de loucura, como um microdelírio circunscrito e ocasional”, ele explica sua ideia de “sujeito folhado”, ou seja, cada um de nós é uma “pluralidade de pessoas psíquicas”, com uma multiplicidade de camadas extremas coexistindo, sadias e doentes. Somos “vários”, portanto temos fantasias venenosas.
Com a loucura postulada, surge a pergunta: que mecanismo faz o sujeito, tanto sadio como doente, se desligar da realidade? No prisma psicanalítico, a psicose é uma resposta tardia a um trauma infantil, sua origem não é propriamente o trauma, mas a defesa do eu contra esse trauma, o que Freud qualificou como “‘psicose de defesa’, para que ficasse claro que a causa da psicose é a defesa”. Essa defesa ruim foi denominada de foraclusão, um termo proveniente do vocabulário jurídico, e proposta por Lacan para “nomear uma grave falha psíquica na resposta do eu ao impacto violento de um trauma infantil”. Nasio ainda exemplifica o significado de foraclusão comparando-o com o recalcamento, outro tipo de defesa: “Recalcar um fato angustiante significa esquecê-lo. […] A foraclusão é uma anestesia das sensações e, portanto, da consciência do que é percebido. Percebo o acontecimento perturbador, mas não sinto nada nem reconheço a violência que ele significa. Percebo sem saber o que percebo”. Concluindo: a foraclusão é a abolição do processo de recalcamento. A partir desse conceito, Nasio cria outro, o da foraclusão local: local porque o trauma e a foraclusão que o ignora afetam uma das folhas do eu, do sujeito folhado. Entre a multidão de eus psíquicos habitando um sujeito, algum ou alguns deles são influenciados pelas pulsões e desligados da realidade, e a isso se dá o nome de “clivagem do eu”.
Quando o sujeito deixa de imprimir a representação de um objeto no psiquismo, ainda que perceba este objeto, ele está foracluindo. Anestesiado das sensações de uma realidade que lhe é intolerável, abre-se um buraco mental, do qual brotará uma psicose, incubada por anos, seja ela na forma de um delírio, ou microdelírio, alucinação ou despersonalização. E por que acontece essa ruptura? De acordo com o psicanalista, ela é a expressão clínica de um eu desesperado por colmatar, por tapar esse buraco aberto pela brutalidade da recusa foraclusiva. “A representação rejeitada retorna ao eu, transformada em percepção alucinada”, diz a fórmula freudiana da foraclusão, e ainda mais simplificada vem a tradicional fórmula lacaniana: “o que é rejeitado do símbolo reaparece no real”.
Além desses conceitos, e justamente porque é preciso explicá-los segundo uma lógica de elos que formam a corrente psicanalítica, o autor ainda explora a transferência simbólica entre analista e analisando; o inconsciente como “realidade virtual cuja faculdade é produzir efeitos reais em nossa vida”, percebido mediante nossa consciência; a localidade e o mecanismo da foraclusão, incluindo sua forma voluntária por parte do analista; o significado mais próximo de “gozo”, quando e como um paciente goza durante uma análise e como isso interfere num diagnóstico.
É por meio de alguns poucos exemplos e ideias repetidas sob vários ângulos, que Nasio constrói sua teoria e consegue nos fazer penetrar nos olhos de Laura, no motivo de sua tristeza, no labirinto emocional que forma boa parte de nossas estruturas. Como um mil-folhas com suas camadas, ou como um muro com seus tijolos, nosso eu é composto por vários eus, e entre eles existe o psicótico — só lançado acima das camadas sadias quando potencializado. “Toda pessoa normal na verdade é apenas medianamente normal, seu eu se aproxima do eu do psicótico em maior ou menor medida”, escreveu Freud. E você, ainda se acha normal?
Alex Sens Fuziy é escritor e crítico.